OS ESPÍRITAS ORTODOXOS
Salomão Jacob Benchaya(*)
A ortodoxia – do grego “orthos” (reto) e “doxa” (fé) – é uma característica do ambiente religioso. Os dicionários a definem como “referente a algo rígido, tradicional, que não evolui, que é conservador, que não se adapta nem admite novos princípios ou novas ideias”.
No espiritismo, que é um movimento evidentemente diversificado, segmentado, também encontramos espíritas ortodoxos, apegados excessivamente aos textos fundadores e avessos a uma reflexão contemporânea sobre as ideias basilares de Allan Kardec. Afirmam que “fora de Kardec, não há espiritismo” ou que “o Espiritismo é um só”. Percebem como verdade apenas o que se encontra na literatura kardeciana toda ela ditada e supervisionada pelos “espíritos superiores”. Sendo a “3ª revelação divina”, como equivocadamente Kardec o situou, tornar-se-ia uma doutrina infalível, portanto, definitiva e indiscutível, terreno já dominado ao qual, um dia, a Ciência poderá alcançar.
Tal postura assemelha-se ao fundamentalismo religioso, geralmente baseado em um livro sagrado que é interpretado literalmente. É nesse campo que se encontram, também, os defensores da “pureza doutrinária” que nada mais é do que o modelo de espiritismo pretendido pelos detentores do poder e do discurso dominante, não necessariamente o proposto pelo fundador do espiritismo.
Elias Inácio de Moraes, em seu livro “Contextualizando Kardec: do século XIX ao XXI”, contrapõe-se a essa visão ao trazer para a contemporaneidade informações e conceitos apresentados por Kardec, perfeitamente ajustados ao seu tempo, mas impróprios para os dias atuais.
Quando a CEPA organizou, em 2000, o seu XVIII Congresso Espírita Pan-americano, na cidade de Porto Alegre e propôs a discussão do tema “Deve o Espiritismo atualizar-se?” – vejam que a CEPA nem afirmou tal necessidade, nem se propôs a assumir tal empreitada; apenas convidou os espíritas à reflexão sobre o tema -, houve uma intensa reação do movimento organizado, com recusa das federativas estadual e nacional a participarem, sob a alegação de que somente os espíritos superiores poderiam tomar tal iniciativa.
Aliás, eu nem poderia
classificar a maioria das federações espíritas como ortodoxas, tendo em vista
sua declarada ou disfarçada adesão aos preceitos roustainguistas.
É possível, grosso modo,
traçar-se um perfil do espírita ortodoxo, ao qual se ajustam, também, espíritas
conservadores:
·
Considera-se
um defensor da pureza doutrinária;
·
Acredita
que o espiritismo tem respostas para tudo;
·
Apega-se
literalmente aos textos de Kardec;
·
Possui
convicções inabaláveis;
·
Diante
das certezas que possui, torna-se, por vezes,
extremamente intolerante;
·
Tende a
menosprezar, combater e até a silenciar o diferente;
·
Opõe-se à
análise crítica dos textos fundadores do espiritismo;
·
Recusa o
diálogo e/ou a conciliação com o opositor;
·
Atribui
ao Espiritismo a tarefa de salvar a humanidade;
·
Condena
os que defendem a atualização do Espiritismo.
Será que essa postura supremacista teria o
aval do fundador do espiritismo?
Como conciliar tal posicionamento em face
da ética proposta por Jesus de Nazaré?
Há perspectivas de uma renovação de
mentalidades entre os espíritas?
Certamente, Kardec não avalizaria a
postura ortodoxa, muitas vezes fundamentalista, de espíritas defensores da
“pureza doutrinária”, excludentes e arrogantes, como fica evidenciado no
seguinte trecho de Obras Póstumas:
“Pretender, porém que o Espiritismo venha a ser organizado,
por toda a parte, da mesma maneira; que os espíritas do mundo inteiro sejam
sujeitos a um regime uniforme, a uma única norma de procedimento; que devem
esperar a luz de um único ponto, para onde tenham voltado os olhos, seria
utopia tão absurda, como pretender que todos os povos da terra não formem um
dia senão uma única nação, governada por um único chefe, regida por um mesmo
código de lei e tendo usos e costumes idênticos.”
Allan
Kardec
Cada vez mais, cresce a percepção de que o mundo caminha para a diversidade, para o pluralismo. São as diferenças que propiciam a interação, o conflito e a dialética busca do crescimento. O propósito alimentado pelos órgãos federativos de “unificar” os espíritas se torna ultrapassado e colonialista por querer impor o “seu” pensamento, o seu modelo exclusivo, cerceando os adeptos de exercerem seu mais elementar direito – o de pensar livremente e de agir segundo sua própria consciência. Os que pensam diferente são marginalizados, excomungados da comunidade federada.
Há pouco mais de 20 anos, começava-se a falar em Alteridade no movimento espírita. Luiz Signates, estudioso de Emmanuel Levinas e Jürgen Habermas, foi quem difundiu o termo e o conceito em nosso movimento impactando a comunicação e o comportamento dos espíritas. Dizia ele em um de seus textos:
“A fraternidade e o diálogo implicam: não ser indiferente ao
outro, mas não apenas isso. Também aceitar pacificamente a presença da
diferença do outro, mas não só. Deve a diferença do outro ser vista como possibilidade
de aprendizado para o eu, mas não basta. É preciso amá-lo, na diferença dele, e
não simplesmente ‘tolerá-lo’.”
Luiz
Signates
O segmento não religioso assimilou
prontamente a proposta da alteridade, hoje compartilhada por inúmeros coletivos
que oxigenam o MEB com suas reflexões e teses. Aliás, postura análoga já era
defendida pela CEPA que, sem ser religiosa, esteve sempre aberta ao diálogo e à
convivência harmoniosa com os vários “espiritismos”. A CEPA e os espíritas a ela vinculados já
foram taxados de “não espíritas” e “obsedados”. Isso vem mudando, felizmente.
Há, todavia, elogiosas exceções de
companheiros e instituições integrantes do movimento majoritário propensos ao
diálogo e ao intercâmbio com os espíritas de variados matizes. Tal postura é –
pode-se dizer – condizente com a ética de Jesus quando afirmou “Se somente amardes os que vos amam, que
mérito se vos reconhecerá, uma vez que as pessoas de má vida também amam os que
as amam?”
Oxalá, possa a experiência do convívio
com os diferentes propiciar a união nos moldes preconizados pelo fundador do
espiritismo. Que se abandone, assim, o propósito “unificacionista”, portador de
uma pretensa vontade divina, missionário, intolerante, castrador, do pensamento
único, da fraternidade apenas com os seus iguais, da ausência de reflexão
crítica.
Há,
pois, esperança quanto a uma lenta renovação no movimento espírita quando todos
os espiritismos caminharão juntos!
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